Pecuária na Amazônia

“A nova ‘fronteira do boi’ foi aberta a partir de picadas, que se transformaram em caminhos e depois em estradas.”

Este post é o segundo da série que prometi com a edição especial sobre a Amazônia, da Revista Manchete, publicada em 1983. Acho isso interessante, principalmente dentro do contexto da alteração do Código Florestal e do movimento #florestafazadiferenca. Não abordarei, nos posts, questões específicas levantadas pela nova proposta do Código Florestal, porque me basearei no que foi publicado pela revista, mas pretendo que aprendamos um pouco sobre o processo histórico que nos trouxe até aqui, e que levou a Amazônia a ser o que é hoje mas, claro, podemos nesse meio discutir o Código Florestal, ou os temas pertinentes a ele.

A reportagem de hoje tratará sobre o boi, a pecuária, que foi uma das estratégias utilizadas pelo governo federal para ocupar a Amazônia, para dar conta do Inferno Verde, como o jornalista escreveu, nos sugerindo como a floresta era tratada há menos de 30 anos. Inferno verde. É algo para se lutar contra, não é? A simbologia contida nesta expressão aumenta em muito o desafio que temos hoje para lutar pela conservação da floresta.

Volkswagen na Amazônia – a nova fronteira do boi

No começo da década de 70, o governo federal, reconhecendo a dimensão territorial da Amazônia, a sua imensa riqueza “(de que Carajás é o maior exemplo)” e “sobretudo o grande vazio amazônico”, apelou às grandes empresas para que “investissem seus recursos financeiros e tecnológicos para ocupar e cultivar algumas regiões amazônicas, principalmente as regiões marginais de transição, inclusive os cerrados adjacentes”

Essa estratégia foi adotada pelo governo federal porque experiências colonizadoras prévias, com pequenos lavradores, haviam fracassado em razão do clima adverso (clima adverso para quem, cara pálida?), das distâncias e das condições do solo amazônico.

Assim nasceu o Projeto Cristalino.

“Em Santana do Araguaia, em plena selva amazônica, uma fazenda de 1.393 Km2, prevista para comportar 106 mil bovinos em 1988, está escrevendo um capítulo novo na história da integração do chamado Inferno Verde ao processo de desenvolvimento brasileiro (grifo meu)”.

Essa fazenda é a “grande experiência agropecuária e pioneira da Volkswagen do Brasil” que desde 1973 vem “trabalhando para ajudar a cruzada nacional de conquista da Amazônia”.

A primeira matéria da revista, descrita aqui, nos mostra onde os conhecimentos científicos haviam chegado em 1983, mas essa estratégia governamental de conquistar a Amazônia através do poder financeiro das grandes empresas começou antes, em 1973. Desconheço a fronteira dos conhecimentos científicos sobre as questões ambientais nessa época, mas alguns pontos que são discutidos agora no Código Florestal já eram conhecidos. Vejam:

“(…) a área da fazenda, de quase 140 mil hectares, era pura selva quando foi iniciado o esforço da Volkswagen, idealizado em 1973 e viabilizado com a utilização de incentivos fiscais. Da área total, 54 mil hectares serão transformados em pastagens, preservando-se mais de 60% da gleba com a cobertura natural, embora a legislação exija apenas 50%. Intocáveis ficarão as matas ao longo dos rios, nascentes e também nos morros, para evitar a erosão. (grifo meu)”

“Acompanhando os meandros do rio Cristalino, piscoso e de águas claras, as pastagens foram sendo implantadas gradativamente para alimentar um rebanho que deverá ser o padrão da Amazônia. A antes quase inacessível floresta hoje é uma das mais avançadas fazendas brasileiras, para a qual converge o interesse de órgãos e universidades de diversas partes do mundo. (grifo meu)”

A reportagem continua mostrando os números impressionantes do crescimento da fazenda em seus primeiros 10 anos. Mostra como a realidade no interior do Pará naquele 1983 estava distante do que se pensava e produzia cientificamente no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, na mesmo época. E termina dizendo que

“a Volkswagen sabe que a sua fazenda não pode perder o caráter de modelo, tanto nos acertos como nos erros. Por isso, além da preocupação de fixar o homem, buscam-se outras possibilidades de aproveitamento do solo e de diversificação de culturas.”

E como estará essa fazenda hoje, pensei? Uma breve busca no Google me levou de cara a um artigo de Benjamin Buclet – sociólogo da UFRJ -, publicado em 2005 e que apresenta fatos relativos à existência de trabalhado escravo na fazenda modelo da Volkswagen. O artigo é muito interessante e vale a pena ser lido. Aborda a influência da globalização e da terceirização sobre a escravidão moderna, além de nos brindar com informações sobre o processo histórico de ocupação da Amazônia através dos grandes empreendimentos agropecuários. Coincidentemente, foi em maio/junho de 1983 que as denúncias de escravidão vieram à tona, depois de serem publicadas, não pela Manchete (a revista é de junho de 83), mas pelo Jornal O Globo.

Buclet afirma, em 2005:

“(…) A região Amazônica aparece mais uma vez como um espaço geográfico vazio cujos recursos devem ser explorados e protegidos da “cobiça internacional” através da sua colonização. Esta visão, extremamente redutora, parece infelizmente ainda muito comum nas elites brasileiras. Ela revela a dominação da região norte do Brasil pela região sul, aonde o caso da Volkswagen não deve apagar os numerosos casos comparáveis onde empresas nacionais brasileiras estejam envolvidas; e a dominação do sul do planeta pelo norte, sendo o poder de uma empresa alemã na escala nacional brasileira uma conseqüência direta desta dominação. Este ponto chama a atenção sobre o atual boom do agronegócio na Amazônia, onde se encontra a mesma aliança entre capitais privados nacionais e internacionais e o aparelho público brasileiro para servir os interesses do “desenvolvimento” da região amazônica e do país em geral.”

Outros dois artigos que li e recomendo – A história dos grandes projetos privados: os enclaves, de Wilton Brito e O fogo visto do céu: advertência esquecida, de Lucio Flavio Pinto –  mostram como a exploração do trabalho humano e queimadas espetacularmente grandes atraíram a opinião pública internacional e transformaram o projeto modelo da Volks em um mega-insucesso, abrindo espaço para outra fonte de muito dinheiro na Amazônia: a mineração, objeto do nosso próximo post.

Uma grande empresa alemã, cujo principal objeto de trabalho é o carro, e não o boi, não pode ter seu nome envolvido em tais escândalos e pula fora. Mas a gente sabe que os processos ambientais e sociais verificados aqui são comuns na história da ocupação da Amazônia, e estão ligados ao modelo desenvolvimentista/capitalista, regidos sempre pelo imediatismo financeiro, pela ideia de matar a galinha dos ovos de ouro.

15 comentários em “Pecuária na Amazônia

  1. É sempre uma surpresa, muito positiva, voltar a este blog. A autora me pede que o faça com mais frequencia, mas sou meio avesso ao ciberspace. Voltando ao que interessa, esta maneira meio jornalística, meio “ciências sociais”, que a Raquel tem de escrever (e como escreve bem!) nos permite não só o acesso às informações pertinentes, como ao gostinho de estar, de viver no local, com seus aromas e sua poeira, suas gentes e seu calor. Leve essa sua curiosidade e admiração pela Amazônia ao seu trabalho de doutora e, tenho certeza, este será também muito apreciado. Um beijo de parabéns de seu eterno admirador (e marido).

    1. Obrigada, meu querido.
      Bem-vindo! Brinde-nos sempre com sua presença, através dos seus comentários que serão sempre pertinentes e cheios da sua rica experiência amazônica.

  2. é verdade! O maridão conseguiu traduzir toda impressão que nos passa a autora. e esse negócio de escrever bem, parece inerente à familia Cesário, hein?!

  3. Certa vez “viajando na maionese” sobre a questão das queimadas, que sempre eram muito comuns na minha vizinhança mineira, dei asas à “maionese” e fui “viajando” em âmbito nacional, pensando em todas as queimadas que dão origens aos grandes pastos Brasil a fora. Pastos, o grande motivo dos maiores desmatamentos! Daí pensei eu, pastos tão grandes para alimentar tanto gado, e, consequentemente, tanto gado para alimentar tanta gente! Daí viajei mais um pouquinho e pensei se a solução, a meu ver, ( na minha maionese), não seria a diminuição do consumo de carne vermelha em escala mundia????
    Ps: Essa maionese foi apenas uma viajem besta, da minha cabeça viu, nada a ver com aditivos químicos, eu garanto!

    Ps2: Mas em nenhuma viajem minha eu iria imaginar a Volkswagen envolvida com pecuária e trabalho escravo na amazônia! Isso sim é que é viajar na maionese!

    1. Fátima,
      muita gente pensa isso, nos efeitos ambientais do menor consumo de carne vermelha, a sua viagem tem muitos participantes. Não só por causa do desmatamento para criar pastos, mas porque o pum dos animais tem metano, que é um gás do efeito estufa que contribui com o aquecimento global cerca de 20 vezes mais que o CO2 emitido nas queimadas. Mas, virar vegetariano não está nos planos de muiiiittaa gente. Eu, por exemplo, tô fora. rsrs.
      Criar gado intensivamente, para poder usar áreas menores, é uma solução usada em muitos lugares, mas esse gado confinado é alimentado com ração, que vem de onde? da agricultura extensiva. Aqui no Brasil, principalmente no Cerrado (opa… Cerrado, cadê? onde?), há muito desmatamento para agricultura extensiva. São grãos que geram muitas divisas para o país. Soja, sorgo… são exportados e servem para alimentar animais, mais que pessoas.
      das áreas atuais áreas já existentes (veneno, uso irracional de água…)

    2. E tem ainda a tão almejada melhor distribuição de riqueza. Tirar da pobreza bilhões de pessoas (pense nos chineses, indianos, africanos) significa ter mais gente no mundo com poder aquisitivo prá comer mais carne, que vai gerar aumento nas áreas agriculturáveis, desenvolvimento de tecnologias que otimizem a produtividade (inseticidadas, OGM`s, uso irracional de água)….
      Esse assunto é muuiiito pesado, pessimista. Se um capitalista pragmático viesse aqui e conseguisse ler isso tudo, sairia vomitando.

  4. Essa do pum fez-me rir, para mim foi novidade! Fez a minha viajem virar uma vírgula! Adorei! Mas eu não sugeri o vegetarianismo não, apenas a diminuição do consumo. Quantas vezes, você por exemplo come carne vermelha por semana? Se pensarmos em todo mundo diminuindo um ou dois dias por semana será que já não faria diferença?
    Sinceramente não vejo hoje em dia, o consumo de carne vermelha como símbolo de poder aquisitivo.Tá tudo bem, é mais caro, então só come quem tem dinheiro, mais quero dizer que não é ganho de vida, melhora de vida. Fui macrô por dez anos e não adoeci por isso! A qualidade dessa ração que você comentou também foi o que um dia causou a Síndrome da Vaca Louca, não foi? Acho que o futuro caminha sim, de um jeito ou de outro, para que o homem repense sua forma de alimentação. A agricultura e a pecuária utilizam métodos muito estúpidos se é essa a palavra mais adequada.
    Ontem assisti um programa que mostrava a forma cruel como os porcos são criados em gaiolas. Sem andar, seus músculos enfraquecem, os ossos ficam porosos, eles ficam estressados entram num tipo de “colapso nervoso”!!! A carne perde sabor, então durante o processamento recebe injeções com misturas para realçar o sabor que perdeu devido à tortura que o animal passou em “vida”! QUE MERDA É ESSA????
    Lembrei dos gansos, do Fois Gras! Você conhece o processo de como é obtida essa famosa iguaria francesa? Se não souber, faço questão de te contar, nunca mais isso entrou na minha casa nem na minha boca!!!!
    Para finalizar, os capitalistas por mim podem vomitar à vontade, porque toda hora que eu lembro da expressão “inferno verde” também sinto náuseas, náuseas e vergonha.
    E tenho dito!

  5. Sobre as questões levantadas com referência ao trabalho escravo na Cristalino, morei lá de 1977 a fins de 1979. Era um pré adolescente que andava por todos os locais da fazenda, pois meu pai era responsável por um grande setor.
    Bom, sem querer entrar nos detalhes, ao ver os primeiras publicações a respeito do tema “escravidão na Cristalino” entrei em contato via Facebook com o Sr. Buclet, e na época e ele me respondeu que o trabalho foi baseado em declarações de pessoas e que estas poderiam ser muito imprecisas, quem sabe tendenciosas.
    Só desejo afirmar o fato de que se houve algum tipo de conflito, foi o conflito entre estilos de vida, formas de se fazer a coisas. A maioria dos funcionários eram pessoas muito simples, acostumadas a outro estilo de vida no campo; sem carteira assinada ou tarefas controladas, horário de trabalho. Este foi o conflito, eu diria, o ‘problema’ que muitas vezes era evidenciado. A questão cultural era muito sensível, aliada a problemas de segurança, tanto que o consumo de bebidas alcoólicas era proibido na fazenda. Mas as pessoas bebiam suco com desodorante, pois tem álcool.
    Dá pra ver diante deste quadro que não era uma equação simples administrar o projeto.
    Se houvesse mesmo alguma atividade ligada ao trabalho escravo não deixariam um menino andar livremente pela fazenda. Haveriam de se ter restrições.
    Nunca vi nem percebi nada de errado e nem minha família. A única coisa que lembro são os momentos incríveis que passei nestes anos por lá, descobrindo um Brasil nunca imaginado. Sinto-me um privilegiado de por podido passar por aquelas experiências.

    1. Carlos, que bom que você dividiu sua estória conosco! Essa questão da escravidão moderna é cheia de nuances e interpretações complicadas, creio. A escravidão de negros até o Seculo IXI é aquela que nos é mais óbvia, até pelo tanto que a TV já mostrou. Hoje nems empre é óbvia, sendo uma questão muito permeada pelos conflitos entre estilos de vida, modos diferentes de se fazer, como você disse. Não sou conhecedora profunda da legislação, mas sei que ela é feita e fiscalizada por pessoas com cultura e experiência de vida muito diferente da dos trabalhadores. Achar o equilíbrio entre o respeito à dignidade humana e o respeito à cultura própria do trabalhador – duas coisas que compõem os direitos humanos – e ainda as necessidades da empresa, não deve ser tarefa fácil.

  6. Morei nessa fazendo da Volks no Pará de 78 a 86, meu pai na época era Contador da Volks na fazenda!

  7. Eu moro aqui na fazenda onde era isso aí
    Agora virou uma vila
    Aínda tem casas e pé de cocos
    E a entrada está do mesmo jeito e muito bom Mora aqui
    Não sabia dessas histórias
    Hoje se chama VILA CRISTALINO

Deixe um comentário